domingo, 16 de dezembro de 2007

Tião Rocha no Roda Viva e as lições do educador popular


Tião Rocha Educador


Aumentou a proporção de estudantes brasileiros nas últimas décadas. Em 1940 apenas 31% das crianças estavam matriculadas, enquanto em 2000, 95% freqüentavam salas de aula. Mas o maior desafio segue sendo o de ter uma educação de qualidade.

No último levantamento realizado pelo PISA - Programa Internacional de Avaliação de Alunos, o Brasil está em 54º lugar na classificação geral que avaliou o desemprenho de estudantes de 15 anos em matemática, ciências e leitura, entre alunos de 57 países.

O entrevistado do Roda Viva desta segunda-feira diz que as escolas precisam ser tão boas que alunos e professores queiram freqüentá-la também aos sábados, domingos e feriados.

Tião Rocha critica a escola formal e diz que ela precisa de mais ousadia e experimentação. Ele criou no sertão de Minas Gerais um projeto pedagógico que mescla educação, cultura e ação social. Utiliza uma maneira de ensinar e aprender baseado no saber popular, no lúdico e no afeto.


Entrevistadores: Júlio Moreno, diretor de jornalismo da TV Cultura; Fernando Rossetti, jornalista especializado em educação e Secretário Geral do Gife (Grupo de Institutos Fundações e Empresas); Uirá Machado, coordenador de artigos e eventos do jornal Folha de S. Paulo; Gilberto Nascimento, oficial de comunicação do Unicef; Mozart Neves Ramos, presidente executivo do Movimento Todos Pela Educação; Renata Cafardo, reporter de educação do jornal O Estado de S. Paulo.

Apresentação: Paulo Markun

(Extraído: do Site Roda Viva 10/12/2007) Comentários da Platéia



Sobre educação, rodas, sabão e brinquedos


Entrevistado no programa Roda Viva, educador Tião Rocha fala sobres duas idéias e projetos
Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Na segunda feira, dia 10 de dezembro, o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, foi o educador mineiro Tião Rocha. Fundador da ONG Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), sediada em Belo Horizonte (MG), Rocha acaba de receber o prêmio “Empreendedor Social”, oferecido pelo jornal Folha de S. Paulo e pela Fundação Schwab, da Suíça. A conquista aponta para o reconhecimento dos métodos educacionais nada ortodoxos, mas bem divertidos, desenvolvidos pelo CPCD, que atende meninos e meninas com dificuldades escolares ou que vivem em situação de risco.
Para compreender com mais detalhes o trabalho da entidade, é necessário conhecer a trajetória de Tião Rocha. Formado em História e Antropologia, no início da década de 1980 ele começou a lecionar na Universidade Federal de Ouro Preto. Passados poucos anos, os problemas com a instituição começaram a se manifestar de forma mais intensa. O educador diz ter percebido que não seria ali, intra-muros e no ambiente acadêmico, que poderia realizar seu desejo de educar meninos e meninas. Em 1982, decidiu pedir demissão e se desligar da universidade, fundando em 1984 o CPCD. A idéia era, já ali, relacionar a educação a algo tão lúdico e agradável como brincadeiras, jogos e conversas com amigos. A proposta era também ajudar meninos e meninas a construir auto-estima sólida para que se transformassem em sujeitos de suas vidas e de seus processos. A educação idealizada por ele se daria, a partir de então, embaixo de um pé de manga, como ele mesmo gosta de dizer.
E o lugar não foi escolhido por acaso. Remete à cultura do interior de Minas Gerais, nascedouro e colo acolhedor das idéias heterodoxas dos educadores do CPCD. Ali, entre o sertão e o mar, a sombra da mangueira é um ponto de encontro tradicional, onde decisões são tomadas e planos são traçados. Esse cuidado, respeito e incentivo às tradições locais representam a condição primeira para concretizar as propostas educacionais do CPCD. “Quando se valoriza a cultura local, do lugar de origem de cada um, se respeita o pertencimento dos meninos e meninas e isso é acolher, valorizar”, disse o antropólogo e historiador, durante a entrevista. Na outra ponta, nas escolas formais, o que se vê, segundo ele, é uma grande indiferença à história e às heranças das pessoas. “História, por exemplo. Você só aprende a do outro se conhece a sua própria história. Perdemos anos estudando Luis XV, os Bourbon, os reis de Roma, mas não dedicamos um dia sequer ao congado, às vaquejadas, à malhação de Judas”. Por isso a proposta primeira da ONG é respeitar as tradições locais.
Pedagogia da rodaE foi então sob o pé de manga que Tião Rocha reuniu pessoas que se ofereceram para ajudar a resolver os dilemas da educação da cidade de Curvelo – e é justamente nesse momento que se revela o primeiro pilar da pedagogia desenvolvida pelo CPCD. “Numa roda todo mundo se vê. A roda é lugar de debate de idéias e de consenso. Não tem eleição, tem discussão e consenso. Todo mundo se vendo e propondo. Essa é a pedagogia da roda”, afirmou ao Roda Viva. É impossível não pensar na inércia que muitas vezes marca as salas de aula convencionais. “Nesse espaço, os meninos ficam olhando para a nuca uns dos outros, não há um convite para o debate, para o embate democrático e pacífico das idéias”, completou. Não significa que a disposição física dos presentes seja a única razão pelos fracassos sucessivos da escolarização no Brasil, mas Tião garante que em tópicos aparentemente irrelevantes como esse é que moram adormecidas as grandes mudanças.
O segundo pilar da organização é o que o educador chama de a pedagogia do sabão. “Essa pedagogia diz respeito à tomada de iniciativa por parte da comunidade para resolver os problemas da educação de suas crianças e da própria comunidade”, pontuou. Novamente ele resgata a herança ancestral brasileira, aqui representada no engenho de fazer sabão, para materializar uma proposta verdadeira de empreendedorismo. Numa roda, os moradores da comunidade chegam a um acordo sobre o que é necessário para melhorar a vida e a educação ali e recebem apoio para tocar os projetos adiante.
Foi assim por exemplo que nasceu o Projeto Fabriquetas, conhecido em seu nome técnico como Núcleos de Produção de Tecnologias Populares. As mini-empresas formadas atualmente já estão presentes em Curvelo, São Francisco e Araçuaí. Trocando em miúdos, essas fábricas se apropriam de tecnologias populares de baixo custo e aplicam tais técnicas na produção de artefatos, que são então vendidos pela Cooperativa Dedo de Gente, que reúne esses núcleos desde 1996. Tião Rocha, no entanto, gosta de dizer que não se trata apenas de economia. Há dois pontos importantes nessa área das fabriquetas. Primeiro, a riqueza do processo e a possibilidade de ver essa gente se associando e criando instrumentos de organização coletiva e auto-gestão, que garantem a autonomia das unidades. O segundo tópico é a questão do coletivo. Para se tornar membro da cooperativa, é preciso fazer parte de uma Fabriqueta. E isso revela também outro preceito do CPCD: "educação é algo que só ocorre no plural", assegurou Tião, diante dos entrevistados.
Pedagogia do brinquedoAté aqui, tem-se a concepção de uma educação que precisa estar baseada e respeitar a localidade, que se alicerça na pedagogia da roda – onde todos têm o mesmo espaço democrático e discutem até chegar num consenso – e na pedagogia do sabão – com a qual se aprende que somando esforços da comunidade e se calcando nas tecnologias populares é possível gerar trabalho, renda e soluções para as comunidades. Faltava fazer de tudo isso uma brincadeira, dar um ar de molecagem na rua, de jogo com os colegas. E é justamente daí que nasce o terceiro pilar: a pedagogia do brinquedo. Foi por meio dela que o CPCD desenvolveu quase 170 jogos que hoje alfabetizam, ensinam a contar e a escrever – entre tantas outras possibilidades – meninos e meninas dentro e fora da escola.
Como tudo é amarradinho, os jogos são fabricados e vendidos pelas fabriquetas. Os jogos atualmente são vistos como tecnologia educacional e utilizados em vários colégios de Minas Gerais, de outros estados e até de fora do país. Os brinquedos criados por Tião e sua equipe já chegaram, por exemplo, a Moçambique e a Guiné Bissau, na África, e representam a ponte mais concreta de intercâmbio entre a ONG e as escolas.
Na entidade criada por Tião Rocha, atuam 30 funcionários e quase 500 educadores. Ela já foi capaz de atender cerca de 20 mil crianças desde sua fundação. E, embora os críticos apontem que essa empreitada toda só dá certo porque foi implantada em cidades pequenas, ele conta que Santo André, no grande ABC Paulista, uma cidade bem urbanizada, vizinha a São Paulo, já adota algumas metodologias desenvolvidas pela instituição. “O que mostra que não é preciso ter um pé de manga de verdade. Há tantos lugares ociosos, parques, praças, garagens, lugares para olhar, trocar e aprender. Qualquer lugar pode ser um lugar de educação”, explicou. A única ressalva dele é para a qualidade do educador. Sem escola se faz educação, mas sem educadores não, ele repete sempre.
Tião Rocha não tem medo de, ao dizer o que pensa, ofender as escolas tradicionais. Durante o Roda Viva, Renata Cafardo, repórter de Educação de O Estado de S. Paulo, perguntou o que o educador achava dos resultados brasileiros em rankings como o PISA, um programa internacional de avaliação comparada de alunos na faixa dos 15 anos que revelou no início de dezembro que o Brasil ocupa a 54ª posição, entre os 57 países avaliados. Em sua resposta, Tião primeiro reforçou a diferença entre educação e escolarização e aproveitou para criticar as escolas formais: “embora vendam educação, na verdade, as escolas estão especializadas em passar conteúdo, escolarizar. Por isso os dados do PISA não são novidade. Todo mundo sabe que lugar ocupamos”, respondeu.
Então a escola formal seria algo inviável? Tião garante que não. Para ele, não só as escolas são fundamentais, como também nelas pode estar contida a semente da mudança. O especialista chama a atenção para realidades mais que relevantes – e a relação de ensino e aprendizagem é o primeiro de seus alvos. O educador destaca que esse binômio deveria ser equilibrado, mas normalmente não é. A disposição física é prova disso. E a maneira como encaramos a relação professor-aluno seria um outro indicador importante dessa vertente: um sabe tudo, e o outro é uma mente vazia a ser trabalhada. “A escola não usa nem 10% de suas capacidades. Ela escolhe um jeito único, uma fôrma para enquadrar e os meninos que se encaixem”, observou. A sugestão dele é que, para sair da Idade Média, a escola só tem duas alternativas: ousar e criar. No sonho de Tião Rocha mora uma escola tão gostosa e tão bem construída que alunos, professores e comunidade teriam vontade de ir lá todos os dias, inclusive aos finais de semana.
Ótica mercadológicaPara o fundador do CPCD, o triste porém é que a escola se rendeu a uma ótica capitalista, mercadológica, que forma pequenas engrenagens para uma máquina imutável. “A escola tem esquecido sua função social que seria de educar e escolarizar crianças; de tão excludente, acaba nem conseguindo cumprir essa proposta original de formar operários. Dali não saem nem os profissionais do mercado e nem as pessoas bem educadas”. Por outro lado, o antropólogo admite que sozinha a escola não conseguirá promover essa revolução que a educação precisa. “Em Moçambique, eu aprendi que é preciso uma aldeia toda para educar uma criança. Aqui não é diferente. A escola sozinha não consegue fazer essa transformação, é preciso convocar a aldeia. Os pais, a comunidade, os professores”, completou.
Aliás, ele sugere que essa mudança de postura comece com os professores, que têm – segundo Tião – o privilégio de ter 180 dias por ano de contato direto com seu aluno e 180 dias por ano para passar o mundo a limpo. E para motivar esse professor a encarar a educação de uma outra maneira, a escola tem de se abrir para aprender, para ouvir seus alunos, os pais, a comunidade e os professores. Também os cursos de formação de educadores precisam formar mais que repetidores de conteúdos. Devem preocupar-se com a qualificação de gente curiosa, com vontade de aprender permanentemente.
Gente educadaLá no CPCD, o educador acredita que os dias de contato com as crianças são bem aproveitados e que de fato elas – ao passarem por ali – se tornam gente educada, como ele gosta de dizer. No entanto, a maneira como se avalia os meninos e meninas que passam por ali ainda gera dúvidas e uma certa desconfiança. Entre os entrevistadores do Roda Viva, a questão sobre como se mede o que as crianças do CPCD aprenderam efetivamente foi levantada várias vezes. Tião Rocha concorda que não há uma régua que meça a auto-estima, por exemplo, mas com seu jeito mineirinho vai explicando o processo pelo qual educadores e crianças passam para concluir uma avaliação. Primeiro eles partem da premissa que as pessoas estão no mundo para (1) serem livres, (2) serem educadas, (3) serem felizes, e (4) terem saúde.
Os processos todos devem apontar para esses objetivos. Uma educação que olhe para essa condição não pode ser, portanto, uma mera habilitação técnica. Ela tem que formar um cidadão solidário, com auto-estima bem construída, que consiga estabelecer contato com a comunidade. E como se mede se o menino conseguiu isso? “Aí entra a arte do educador, é a percepção que ajuda nisso é o olhar para os pequenos detalhes, para uma postura, para uma maneira diferenciada de resolver os problemas”, explicou.
Mas já que os entrevistadores insistiam nos parâmetros, Tião contou que eles observam se a criança está rindo, está limpa, tem atitudes solidárias, participa da roda e cuida das suas coisas. Esses cinco parâmetros ajudam a revelar se o menino está bem integralmente ou não. Se ele chora mais que ri, ou se anda sujo, ou se não cuida bem das suas coisas e dos objetos do grupo, ele não estaria bem – e para essa criança seria necessário então um olhar mais atento. “É uma linguagem de códigos, que a matemática não consegue quantificar, mas que um olhar preparado consegue”. E se a criança não vai bem? “Ai aplicamos o cafuné pedagógico”, contou o educador, entre risos. Segundo ele, esse cafuné consiste em observar a maneira como ele vai se apropriando do aprendizado, como vai experimentando sua criatividade e como vai transformando a pedagogia do CPCD. “São todos indicadores da qualidade da educação e isso dá para medir”, afirmou.
Encerrando a participação no programa, Tião Rocha contou que outro trabalho do CPCD é acompanhar e monitorar a vida dos meninos e meninas que passaram por lá. “Eles vão bem, muito bem. São todos pessoas de bem, em dia com sua auto-estima, capazes de buscar sua sobrevivência de forma ética, solidária e comprometida com a comunidade. Enfim, são todos gente educada”, concluiu.

Extraído de Boletim do SIMPRO- Edição nº 185 - 14/12/2007