terça-feira, 20 de maio de 2008

Currículo multicultural

A Lei federal 10.639 fez três anos, mas o ensino sistematizado da cultura africana e afro-brasileira nas escolas do país ainda é iniciativa de poucos professores e escolas.Nas escolas públicas e particulares do Brasil, estão matriculados 49,2 milhões de alunos, da educação infantil ao ensino médio. Destes, 22,2 milhões se declaram negros ou pardos, e 16,7 milhões se declaram brancos. Temos ainda 497 mil de cor amarela, e 298 mil de origem indígena. Fora os 9,4 milhões de alunos que não declararam sua cor. É com essa colorida diversidade cultural que os milhões de professores brasileiros precisam lidar todos os dias dentro das salas de aula.
Mudando a versão da História
Uma das medidas tomadas pelo governo federal para atender melhor a essa diversidade foi a criação da lei 10.639, que determina que as escolas de ensino médio e fundamental incluam em seu conteúdo programático o estudo da história da África e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e do papel do negro na formação da sociedade nacional.Historicamente, os livros didáticos brasileiros traziam uma versão simplificada e até deturpada a respeito da colonização do Brasil.
Os povos indígenas eram considerados preguiçosos, os escravos africanos eram inferiores, e os brancos europeus eram a fonte de cultura, de conhecimento e de civilidade. Claro que essa visão discriminatória vem mudando há anos, mas o preconceito racial é ainda muito presente na sociedade.
O episódio recente envolvendo o coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia - um médico branco que afirmou que o resultado ruim dos alunos do curso no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) era por conta do baixo QI dos baianos - é apenas um triste exemplo disso.
Para a professora-doutora Petronilha Beatriz Gonçalves, pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (SP) e ex-conselheira do Conselho Nacional de Educação, a sociedade ainda está acostumada a ter uma visão de raça superior de origem européia: “E esse é o maior desafio: mudar o pensamento de professores, gestores e governos. A educação é a saída para combater o preconceito não só das crianças mas, principalmente, dos adultos.
Mudando a cabeça de quem ensina a História
Após três anos de vigência, a lei 10.639 ainda não foi aplicada na maioria das escolas brasileiras por falta de vontade política, mas também por falta de interesse dos professores: “Para a lei pegar, depende muito do professor se engajar. Não adianta os governos oferecerem capacitação e material de apoio didático se o próprio professor não acreditar na proposta, se a escola não incentivar esse uso”.
Para ela, há um receio entre os professores de que falar sobre isso pode configurar um estímulo ao preconceito racial: “Mas quem pensa assim é porque não entendeu direito a proposta. É preciso que o professor saiba como tratar desse assunto e, em muitos casos, desconstruir o próprio preconceito, para que possa ensinar de maneira mais isenta”.
E investimento em capacitação e material didático não falta. Segundo dados da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - Secad, do MEC, até agora mais de 11 mil professores já passaram por uma qualificação, e 18 livros voltados para esse tema foram produzidos. O Estado de São Paulo, por sua vez, capacitou outros 15 mil professores, no programa “Educando pela Diferença para a Igualdade”.
Mas ainda é pouco, num universo de 2,1 milhões de professores brasileiros.A professora Petronilha lembra que o primeiro Conselho Municipal de Educação a implementar a lei foi o de Belo Horizonte, e o primeiro em nível estadual foi o de Mato Grosso do Sul. E, muito antes da sanção dessa lei, a Secretaria de Educação da Bahia já tinha estabelecido o ensino da cultura negra nos currículos: “Mas são iniciativas ainda isoladas, que dependem muito mais do trabalho individual de algumas pessoas comprometidas. Se mudar o governo e as pessoas forem trocadas, tudo pode se perder. Essa questão não deve ser tratada como uma vontade de um governante. Ela tem de ser uma política de Estado”.
História de todos para todos
Para quem pensa que ações afirmativas como essa podem provocar o efeito contrário, ou seja, reforçar as diferenças entre as pessoas de cor de pele diferente, a especialista esclarece: “É preciso conhecer de forma adequada as raízes culturais e históricas da metade da população brasileira, pois quase 50% da população é negra e parda”.
Um exemplo desse desconhecimento é que ainda é muito comum crianças usarem apelidos discriminatórios em sala de aula sem saber. “Ao entenderem o que é ter uma raiz étnico-cultural, essas crianças aprendem que o modo como se relacionam com os colegas negros pode ser inadequado. A educação, assim, está ajudando a mudar posturas que muitas vezes nem os professores se dão conta de que são preconceituosas”, explica ela.
Por isso, a especialista vê com bons olhos a nova lei nº 11.465/08 - que acaba de ser sancionada pelo presidente Lula e substitui a Lei nº 10.639/03 - que dá o mesmo destaque ao ensino da história e da cultura dos povos indígenas. Todas as disciplinas, especialmente História, Geografia e Literatura, devem, a partir de agora, abordar a contribuição dos negros e dos indígenas para a formação da cultura brasileira.Para muitos professores, pode parecer que, na prática, isso vai significar mais trabalho, o que é equivocado:“Ações como essa não significam que uma etnia surja em detrimento de outra. É para falar de maneira correta de algo que é verdadeiro, das nossas raízes, que têm diversas origens, e que contribuíram de forma determinante para a construção da nossa unidade e identidade nacional”, conclui Petronilha.
Patrícia Costa - Editora de jornalismo do programa Nós da Escola, da Multirio.

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quinta-feira, 15 de maio de 2008

Reforço de peso para a leitura

Com uma longa trajetória na área da Educação e autora de livros didáticos para o ensino da língua portuguesa, Jeanete Beauchamp tem na formação de professores o principal foco de incentivo à leitura entre crianças e jovens no País. Atual diretora do Departamento de Políticas de Formação, Materiais Didáticos e de Tecnologias para Educação Básica da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC) e mestra em Educação pela PUC-SP, Jeanete já dirigiu o Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental e a Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo, ambos do MEC, além de ter sido secretária de Educação dos municípios de Mauá e Embu das Artes (SP).

Panorama Editorial - Há um esforço por parte do governo federal no sentido de universalizar o acesso aos livros nas escolas e bibliotecas escolares. De que maneira esta ação contribui para melhorar o índice de leitura dos brasileiros? Que efeitos ela pode ter no desempenho dos alunos das escolas públicas, no que diz respeito ao nível de letramento, e na qualidade do ensino público nacional?

Jeanete Beauchamp - Vincular a qualidade da educação ao desinteresse pela leitura seria simplificar muito as coisas. A questão do baixo índice de leitura não pode ser considerada isoladamente, muito menos comparada aos níveis de outros países. O que é preciso levar em conta é que há diferentes realidades dentro de um mesmo país, e elas precisam ser tratadas de acordo com suas especificidades. Não é a qualidade da educação brasileira que é responsável pela "não-leitura", tampouco é a "falta de leitura" a responsável pela qualidade da educação. Há muitos outros fatores relacionados e muitas pesquisas dão conta disso. Não acreditamos que haja um desinteresse pela leitura, pelo contrário, se você perguntar às pessoas se gostam de ler a resposta será afirmativa. No entanto, é preciso combater as dificuldades em se efetivar a leitura, como o analfabetismo funcional, o acesso ao livro, o pouco incentivo à freqüência a bibliotecas públicas, o baixo número de bibliotecas e de livrarias no País e a própria formação do professor como leitor, entre outras. A questão mais importante a ser levantada é que, pela primeira vez, há um programa voltado para a educação infantil. É importante porque o comportamento leitor, o gosto pela leitura deve ser trabalhado desde os primeiros anos de vida de uma criança. Outra questão é que, também pela primeira vez, há um programa tanto de livros didáticos como de formação de bibliotecas escolares para o ensino médio. Entendemos também que o professor tem um papel muito importante como mediador de leitura, um dinamismo de forma que as crianças se dirijam às bibliotecas, retirando livros ou fazendo lá mesmo sua leitura. É preciso que esse estímulo inicial seja feito pelos professores, porque você pode até dotar uma escola com bibliotecas e acervos, mas sem ter alma.

PE - Com a ampliação do currículo do ensino fundamental de oito para nove anos, que deverá atingir toda a rede de ensino até 2010, o que tem sido feito para formar e estimular a formação de professores para a educação básica?

Jeanete - Temos um programa no MEC que se chama Pró-Letramento, de formação continuada, com duração de um semestre letivo, para professores dos anos iniciais do ensino fundamental nas áreas de alfabetização e linguagem e matemática. Nos módulos com os quais trabalhamos a formação dos professores de alfabetização e linguagem, há um ciclo voltado a essa questão da leitura, das bibliotecas, da organização dos livros na escola. É um programa que tem um largo alcance no País. Hoje, atende a 150 mil professores e deve crescer, pois registramos muitas solicitações de interessados em participar. Temos aqui um documento que se chama Política de Formação de Leitores. Ele é constituído de três publicações: Por uma Política de Formação de Leitores, Biblioteca na Escola e Dicionário em Sala de Aula. O primeiro é trabalhado com o histórico das ações que o MEC já desenvolveu na área de livro, leitura e biblioteca; trabalhamos com os indicadores de leitura na sociedade brasileira e na escola e estabelecemos nossos conceitos e princípios para a política de formação de leitores. Isto é importante porque o documento passou por discussões em várias regiões do Brasil. Acatamos as sugestões apresentadas pelos secretários municipais de Educação e pelos representantes dos Estados e elaboramos o documento. Tem por objetivo discutir o papel da escola na formação de leitores competentes, autônomos, e como o professor pode trabalhar para alcançar isso. Traçamos nossa política. Com o Biblioteca na Escola discutimos como os educadores podem organizar o acervo escolar e utilizá-lo em seu trabalho de formação de leitores. É uma referência para o professor trabalhar com os acervos, não especifi camente com cada obra, mas de maneira geral, com todos os acervos de literatura e de periódicos. No Dicionário em Sala de Aula explicamos como o MEC estabeleceu uma política para isso. É um trabalho para que o professor conheça o dicionário, como utilizá-lo na sala de aula e introduzir o aluno neste gênero, porque muitas vezes há uma compreensão de que o dicionário deve fi car só na biblioteca, só para consultas. Na medida em que encaminhamos acervos para cada uma das salas de aula, estamos sinalizando que ele deve ser usado nos exercícios e atividades que o aluno realiza ali. São políticas que convergem para a formação do leitor, para o trabalho com a produção de textos dos alunos.

PE - Como está o cronograma dos programas nacionais para compra de livros didáticos e dicionários? Há alguma mudança ou novidade nos critérios de seleção das obras?

Jeanete - Atualmente estamos entregando os acervos do PNBE [Programa Nacional Biblioteca da Escola] da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental. O próximo será um PNBE para anos finais do ensino fundamental e para ensino médio. O que temos de novidade é que introduzimos neste ano, especialmente para o ensino fundamental, acervos de obras complementares. Vamos fornecer materiais para os dois primeiros anos do ensino fundamental e esses acervos vão contemplar as diferentes áreas do conhecimento: Ciências da Natureza e Matemática, Ciências Humanas e Linguagem e Códigos. Estas obras devem ser trabalhadas pelo professor para além do livro didático. São acervos que vão para a sala de aula e trabalham com os conteúdos presentes nos didáticos. Mas com uma diferença: não é PNBE, porque não são títulos de ficção e tampouco didáticos; são obras que estamos chamando de complementares, como mais uma frente para o estímulo à leitura. E como caracterizamos essas obras? Primeiramente, devem abordar as áreas do conhecimento de forma lúdica, com objetivos pedagógicos e conteúdos de interesse para o nível de escolarização das crianças que ingressam agora aos 6 anos. Devem ser projetos editoriais que motivem o interesse e despertem a curiosidade das crianças, usando linguagem verbal e recursos gráficos adequados aos alunos em fase inicial de alfabetização. Na verdade, queremos com isso ampliar o universo de referências culturais dos alunos nas diferentes áreas do conhecimento, assim como contribuir para ampliar e aprofundar suas práticas de letramento.

PE - Muitos especialistas argumentam que nem sempre os títulos escolhidos atendem às especificidades de cada escola no que diz respeito à cultura e à realidade locais. O que pode ser feito para minimizar este problema?

Jeanete - Temos, nos processos de formação, primeiro a necessidade de que o professor faça essa opção de forma autônoma. O professor não deve sofrer pressões de nenhum tipo nessa seleção. Os livros devem estar de acordo com o projeto político-pedagógico da escola e dos professores. Oferecemos, depois do processo de avaliação, um menu com obras para os professores e eles podem, evidentemente, escolher aquelas que estejam mais de acordo com o seu projeto de trabalho. Mas é importante que o coletivo de professores faça da escolha dos livros um momento também de reflexão de sua prática, de seu projeto pedagógico, do seu dia-a-dia escolar. Enfim, é muito importante que ele avalie autonomamente as obras resultantes do processo de avaliação. O fato de algumas escolas receberem livros diferentes dos escolhidos são casos isolados, até porque o processo permite uma segunda opção, feita pelos próprios professores.

PE - O MEC anunciou no início de março que as editoras interessadas em participar do Plano Nacional do Livro Didático de 2010 devem seguir as normas do novo acordo ortográfico da língua portuguesa. O que motivou essa exigência? Isso pode alterar a etapa de inscrições?

Jeanete
- Isso aconteceu porque o PNLD vai selecionar obras a partir de 2010. Por isso, há uma necessidade de que elas já contemplem as alterações previstas pela reforma ortográfi ca. Com a aceitação do acordo por parte de Portugal, não há mais impedimentos para que ele entre em vigor. Além de serem distribuídos em 2010, esses livros serão usados por três anos consecutivos, até 2012. Se não fi zéssemos esta exigência agora, teríamos de promover esta alteração só em 2013. É preciso pensar no ano da distribuição dos livros e na duração de utilização deles.

Panorama Editorial. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, abr. 2008.

O texto integral da entrevista está disponível no sítio da revista. Pode ser lido e/ou copiado mediante cadastro gratuito feito no próprio sítio:
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