segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A diferença como valor positivo no processo ensino-aprendizagem

Leiam a entrevista com a pesquisadora Lucimar Rosa Dias, que trabalha com a diferença como valor positivo.
(Doutoranda pela Faculdade de Educação da Universidade de S. Paulo, Ex-Bolsista Internacional da Fundação Ford, consultora do CEERT- Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade- SP e ex-coordenadora estadual de políticas de combate ao racismo do governo do Mato Grosso do Sul).
Entre suas publicações está o livro Ações afirmativas em educação Experiências brasileiras. Selo Negro Edições, 2003.

O dia 20 de novembro não é feriado aí na Venezuela, mas aqui no Brasil há várias cidades que decidiram homenagear o líder do Quilombo dos Palmares. Temos de fato motivos para comemorar?

Temos sim, e muito. E entendo que o grande homenageado deva ser o movimento negro. É a força desse movimento que renova a batalha, a luta diária pela superação de todas as diferenças. É um movimento que, embora tenha caminhos variados e organizações bem diversas, continua muito vivo e atuante, desde a época colonial. É esse movimento também que tem conseguido pautar a sociedade com as questões relacionadas aos negros. Avanços importantes já aconteceram, como as cotas nas universidades, a aprovação da Lei 10.639, que dispõe sobre o ensino transversal da trajetória dos negros no país, e até o avanço a olhos vistos na produção acadêmica. Então temos sim motivos para festejar, embora a reflexão precise estar sempre presente, para aprofundarmos as conquistas.

Como a senhora iniciou e passou a conciliar as trajetórias de militante e de pesquisadora?


Eu sempre fiz parte do movimento negro. Eu pertenço a uma organização de Mato Grosso do Sul chamada TEZ, Trabalho e Estudos Zumbi. Ali era um lugar de discussão de reflexão e de muita proposição. Ali foi a base que possibilitou meus outros caminhos. Eu fiz magistério e quando entrei na faculdade de Pedagogia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, a questão de como os negros são vistos e tratados nas escolas começou a ficar muito presente. Eu já era professora da educação infantil nessa época e uma colega minha começou a ficar muito preocupada com um aluno dela, negro, de uns seis anos, que se sentia muito mal por ser o único negro da classe. O aluno era discriminado pelos colegas e se sentia péssimo com isso. A professora, embora não atuante no movimento organizado, era muito sensível a essa questão e me procurou para ter idéias de como abordar o problema com seus alunos.
Você já trabalhava com pesquisas relacionadas à questão do espaço do negro na educação? Não, e isso é que foi mais interessante. Na TEZ, tínhamos uma metodologia muito bacana para discutir a discriminação e o preconceito, mas era uma metodologia para adultos, nunca tínhamos enfrentado o desafio de lidar com o problema com crianças. Foi um desafio mesmo. Então, junto com outros membros da TEZ e com outra professora, que viria a ser minha orientadora, criamos uma metodologia, aplicamos e tivemos muito bons resultados ali. Meu mestrado então foi verificar o que tinha acontecido nas escolas que haviam aplicado a nossa metodologia. Na verdade, o que tinha acontecido com o conhecimento. Queríamos saber se ele tinha sido utilizado, expandido, modificado. Se a escola tinha mudado e se o professor tinha sentido alguma diferença.

Antes de revelar o que aconteceu com esse conhecimento, você poderia contar como é a metodologia criada e aplicada por vocês?


Bem, o início de tudo, o que mais queremos ensinar é a diferença como valor positivo. A idéia desse método é que ao final de sua aplicação a criança tenha começado a construir em si a noção de que a diferença é um valor positivo. E o grande desafio é como trabalhar essa noção com crianças pequenas, da educação infantil. Ou seja, como introduzir e trabalhar essa pauta. O que nós pensamos foi primeiro trabalhar com flores. Levamos rosas de cores variadas e dizemos que é uma surpresa e eles têm que adivinhar o que é. Vamos dando dicas até que os alunos descobrem que são flores. Quando expomos as rosas na roda, começamos a perguntar o que eles estão vendo e a questão da cor, da diferença da cor, salta aos olhos. Logo eles percebem que são diferentes. E, na comparação delas e seguindo a provocação que vamos fazendo, eles acabam percebendo que, embora diferentes, todas as rosas têm o mesmo valor, servem para as mesmas coisas. Aí termina a primeira etapa. A segunda etapa é com pintinhos, ou com qualquer outro animal. Pode ser coelho, gato, cachorro, mas pintinho é legal porque são baratos, fáceis de encontrar e podem morar na escola por um tempo. Também com os pintinhos o método se repete, até que eles chegam à conclusão que também no caso dos animais (exatamente como no caso das flores e das plantas), a diversidade e a diferença são coisas legais, bonitas.
E a etapa seguinte deve ser com pessoas. Exatamente. A gente propõe que eles descubram a terceira surpresa e eles descobrem que são eles mesmos e passam a se comparar e nesse momento o professor tem que ser muito atento. Porque uma coisa é falar de planta e bicho. Outra coisa é falar de si e dos seus pares. Nessa etapa as coisas mais ricas se revelam.

É aí que as crianças se mostram preconceituosas?


Isso mesmo. Aqui a discriminação e o preconceito racial aparecem. Aparecem em relação ao professor, caso ele seja negro, e aparecem mais forte em relação aos colegas. Aí é preciso muita delicadeza para desconstruir o discurso da criança que manifesta o preconceito sem feri-la e sem expor o colega discriminado. Porque não queremos ficar fazendo discurso, massacrando as crianças, doutrinando contra o racismo.

Mas essa criança de três a seis anos ainda não tem bagagem para discernir sobre o racismo...


Não tem. Ela repete um discurso que acaba formando suas percepções, mas ainda não tem, nem deve ter responsabilidades em relação a isso. Por isso é tão comum, quando ela tem uma professora negra e gosta dessa professora, o fato de desculpar a professora por ser negra. Deixe eu explicar melhor. A criança diz: eu não gosto de preto. E a professora responde: mas eu sou negra, você não gosta de mim? E a criança emenda: mas é que você é professora. Entende? As coisas ainda não estão sedimentadas, ainda há espaço para trabalhar e mostrar que se a criança gosta, a cor é só um detalhe, não é importante. Então o que a gente quer provocar com tudo isso é a reflexão. Vamos levando as crianças a pensar sobre aquilo que estão falando, sobre essa questão e dá resultado, viu?

No seu mestrado você foi buscar o que ficou da aplicação desse método em algumas escolas. O que encontrou?


Bem, pesquisamos três escolas em que o método havia sido aplicado. E encontramos uma que quase não apresentou mudanças. Quer dizer, passou a comemorar o 20 de novembro, incluiu a data no calendário, mas só. A que mais apresentou mudanças aplicou o método e expandiu, aprofundou, adaptou à realidade daquela escola. Mas em todas, o que a gente encontrou foi uma constatação comum, mas que faz toda a diferença: para fazer diferença, não basta a boa vontade do professor. Porque em todas havia professores bem dispostos, atentos ao tema. O ponto de virada é a infra-estrutura e o apoio. O professor precisa se sentir amparado para aplicar mudanças assim, se não a coisa não vai para frente.

Quando a senhora diz que a escola precisa apoiar, do que estamos falando exatamente?


Em primeiro lugar, a instituição precisa ser sensível a essa questão do negro, à questão da discriminação e dos direitos dos cidadãos de todas as cores. Se a escola passa ao largo disso, não vai funcionar. Outra coisa é que a escola precisa oferecer a estrutura para amparar o professor na tarefa de discutir as diferenças. Se a escola só tem revistas com fotos de pessoas brancas, não dá para fazer uma colagem representando a diversidade. Tem um recurso comum, que é contar histórias de princesas japonesas, africanas, muçulmanas. É importante que a criança realize essas imagens de alguma maneira, e a escola precisa ajudar com isso. Estou falando das coisas simples e até das mais complexas. Mas principalmente a escola precisa ter uma política de superação das diferenças. Essa que eu pesquisei e que mais avançou na metodologia era uma escola com uma proposta pedagógica bem consolidada e construída coletivamente. E isso ajuda bem.

E quando a senhora fala em bons resultados, como é que se mede isso? Em relação às crianças?

Bem, criança é um bichinho fantástico, porque dá os retornos muito rapidamente. A primeira coisa que surpreende no trato com os meninos é que embora eles tragam um discurso carregado de preconceito, eles são muito abertos à reflexão. Se a gente oferece os conteúdos, eles vão colhendo e construindo seu próprio raciocínio, se esse conteúdo for cidadão, comprometido com a superação do racismo, da discriminação, do preconceito, o resultado é que essas crianças atentarão para isso, serão crianças preparadas para lidar emocional e intelectualmente com o problema. Na minha experiência, o que me chama a atenção é a naturalidade. Quando uma criança fala naturalmente que alguém é negro – mesmo que fale preto – isso é um indicativo importante. A característica de ser negro não pesa nada para aquela criança e isso é ótimo.

Voltando à sua resposta sobre a escola apoiar... No final, a senhora destaca o papel da escola e da família. Essas crianças são tão pequenas... De onde vem esse preconceito? Porque muitas vezes a família é atenta às questões raciais, mas a criança manifesta um comportamento de certa forma oposto.

É isso é mais comum que se imagina. Claro que a família é o berço, é a influência primeira, mas não é a única. Somos uma sociedade cheia de influências, desde os cuidadores das crianças, como as avós, as babás, as creches, até chegar à escola e à mídia. Eu li uma pesquisa linda da Unicamp em que a autora falava sobre a diferença de tratamento de berçaristas para um mesmo comportamento de um menino negro e de um branco. Quando um bebê negro empurra o berço até o meio do dormitório, a berçarista comenta: esse menino é um furacão! Se é uma criança branca, a mesma berçarista diz: vocês viram como o fulano é esperto? Olha até onde ele trouxe o berço! Repare que os bebês não têm discernimento sobre a diferença no tratamento, mas ambos introjetarão que o branco leva alguma vantagem. Sem falar na mídia, que estimula uma discriminação velada, que finge ser inexistente. E devagarzinho, com essas atitudes aparentemente inocentes, mas que na verdade são carregadas de negativismo, vamos construindo cidadãos preconceituosos, que estabelecem diferenças entre negros e brancos. E contra isso, uma das ferramentas de ação são essas metodologias como a que construímos com os pré-escolares, porque uma ação dessa mexe com todo mundo. Com a criança, com seus pais, com sua família, com a escola, com o círculo de amigos, até chegar à sociedade. Pelo menos é nisso que a gente acredita.

E há metodologias para alunos e também para professores. Esse foi o assunto de sua tese de doutorado, não é?

Foi. No mestrado, nossa atenção era para a escola. No doutorado o foco é o professor especificamente.

Você pesquisou os professores que aplicaram a metodologia da diferença como valor positivo?

Não, dessa vez o alvo foram professores que passaram por cursos de formação para a superação das diferenças. Em várias cidades do Brasil, os governos nos vários níveis oferecem esses cursos de formação que pretendem preparar o professor para lidar com as questões de preconceito, discriminação. No meu doutorado analisei dois cursos, um de Mato Grosso do Sul e outro oferecido pela prefeitura de Campinas. A idéia era falar a partir do ponto de vista do professor. O curso ajuda? Atrapalha? Faz sentido? O que eles aprendem lá? O que dá para aplicar? Como a escola reage? Mas sempre sob a ótica do professor que passou pela formação.

A que conclusões vocês chegam e como o professor sai de uma experiência como essa?

De novo temos respostas variadas. Tem desde os professores que acham interessante e fim até aqueles que mudam radicalmente sua ótica, seus métodos e seus cuidados. E de novo, o que pesa aqui é a infra-estrutura. Se a escola, ou pelo menos o sistema educacional, dá apoio, o professor deslancha; caso contrário, ele se sente sozinho, inseguro, incapaz de implementar tudo aquilo que aprendeu no curso. E, normalmente, os professores saem muito motivados, cheios de idéias. Se a escola banca, eles conseguem levar seus projetos adiante. Mas se a escola ignora aquela possibilidade é uma frustração enorme para o educador. Em Campinas o caso é emblemático porque superar as diferenças raciais é uma política de estado. Então a escola fica fortemente sugerida a cumprir aquela determinação. O que é ótimo para o professor, que recebe um respaldo motivador. E a gente acha que é por aí mesmo. Mexer nas escolas, mexer nos professores para trabalhar o estudante para, no fim das contas, alcançar um mundo mais igualitário.

Leia mais aqui

2 comentários:

Falem, professores! disse...

Para quem quiser saber um pouco mais sobre a pesquisa (metodologia e resultados), vale a pena visitar o texto da autora entitulado Aprendizado étnico-racial ajuda crianças a compreenderem diferenças, no endereço on-line:
http://64.233.169.104/search?q=cache:AF8rJZYKHmsJ:noticias.usp.br/acontece/obterNoticia%3Fcodnucjrn%3D1%26codntc%3D15521+Lucimar+Rosa+Dias&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=6&gl=br

Falem, professores! disse...

O endereço correto é:
http://noticias.usp.br/acontece/obterNoticia?codnucjrn=1&codntc=15521