A Lei federal 10.639 fez três anos, mas o ensino sistematizado da cultura africana e afro-brasileira nas escolas do país ainda é iniciativa de poucos professores e escolas.Nas escolas públicas e particulares do Brasil, estão matriculados 49,2 milhões de alunos, da educação infantil ao ensino médio. Destes, 22,2 milhões se declaram negros ou pardos, e 16,7 milhões se declaram brancos. Temos ainda 497 mil de cor amarela, e 298 mil de origem indígena. Fora os 9,4 milhões de alunos que não declararam sua cor. É com essa colorida diversidade cultural que os milhões de professores brasileiros precisam lidar todos os dias dentro das salas de aula.
Mudando a versão da História
Uma das medidas tomadas pelo governo federal para atender melhor a essa diversidade foi a criação da lei 10.639, que determina que as escolas de ensino médio e fundamental incluam em seu conteúdo programático o estudo da história da África e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e do papel do negro na formação da sociedade nacional.Historicamente, os livros didáticos brasileiros traziam uma versão simplificada e até deturpada a respeito da colonização do Brasil.
Os povos indígenas eram considerados preguiçosos, os escravos africanos eram inferiores, e os brancos europeus eram a fonte de cultura, de conhecimento e de civilidade. Claro que essa visão discriminatória vem mudando há anos, mas o preconceito racial é ainda muito presente na sociedade.
O episódio recente envolvendo o coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia - um médico branco que afirmou que o resultado ruim dos alunos do curso no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) era por conta do baixo QI dos baianos - é apenas um triste exemplo disso.
Para a professora-doutora Petronilha Beatriz Gonçalves, pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (SP) e ex-conselheira do Conselho Nacional de Educação, a sociedade ainda está acostumada a ter uma visão de raça superior de origem européia: “E esse é o maior desafio: mudar o pensamento de professores, gestores e governos. A educação é a saída para combater o preconceito não só das crianças mas, principalmente, dos adultos.”
Mudando a cabeça de quem ensina a História
Após três anos de vigência, a lei 10.639 ainda não foi aplicada na maioria das escolas brasileiras por falta de vontade política, mas também por falta de interesse dos professores: “Para a lei pegar, depende muito do professor se engajar. Não adianta os governos oferecerem capacitação e material de apoio didático se o próprio professor não acreditar na proposta, se a escola não incentivar esse uso”.
Para ela, há um receio entre os professores de que falar sobre isso pode configurar um estímulo ao preconceito racial: “Mas quem pensa assim é porque não entendeu direito a proposta. É preciso que o professor saiba como tratar desse assunto e, em muitos casos, desconstruir o próprio preconceito, para que possa ensinar de maneira mais isenta”.
E investimento em capacitação e material didático não falta. Segundo dados da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - Secad, do MEC, até agora mais de 11 mil professores já passaram por uma qualificação, e 18 livros voltados para esse tema foram produzidos. O Estado de São Paulo, por sua vez, capacitou outros 15 mil professores, no programa “Educando pela Diferença para a Igualdade”.
Mas ainda é pouco, num universo de 2,1 milhões de professores brasileiros.A professora Petronilha lembra que o primeiro Conselho Municipal de Educação a implementar a lei foi o de Belo Horizonte, e o primeiro em nível estadual foi o de Mato Grosso do Sul. E, muito antes da sanção dessa lei, a Secretaria de Educação da Bahia já tinha estabelecido o ensino da cultura negra nos currículos: “Mas são iniciativas ainda isoladas, que dependem muito mais do trabalho individual de algumas pessoas comprometidas. Se mudar o governo e as pessoas forem trocadas, tudo pode se perder. Essa questão não deve ser tratada como uma vontade de um governante. Ela tem de ser uma política de Estado”.
História de todos para todos
Para quem pensa que ações afirmativas como essa podem provocar o efeito contrário, ou seja, reforçar as diferenças entre as pessoas de cor de pele diferente, a especialista esclarece: “É preciso conhecer de forma adequada as raízes culturais e históricas da metade da população brasileira, pois quase 50% da população é negra e parda”.
Um exemplo desse desconhecimento é que ainda é muito comum crianças usarem apelidos discriminatórios em sala de aula sem saber. “Ao entenderem o que é ter uma raiz étnico-cultural, essas crianças aprendem que o modo como se relacionam com os colegas negros pode ser inadequado. A educação, assim, está ajudando a mudar posturas que muitas vezes nem os professores se dão conta de que são preconceituosas”, explica ela.
Por isso, a especialista vê com bons olhos a nova lei nº 11.465/08 - que acaba de ser sancionada pelo presidente Lula e substitui a Lei nº 10.639/03 - que dá o mesmo destaque ao ensino da história e da cultura dos povos indígenas. Todas as disciplinas, especialmente História, Geografia e Literatura, devem, a partir de agora, abordar a contribuição dos negros e dos indígenas para a formação da cultura brasileira.Para muitos professores, pode parecer que, na prática, isso vai significar mais trabalho, o que é equivocado:“Ações como essa não significam que uma etnia surja em detrimento de outra. É para falar de maneira correta de algo que é verdadeiro, das nossas raízes, que têm diversas origens, e que contribuíram de forma determinante para a construção da nossa unidade e identidade nacional”, conclui Petronilha.
Patrícia Costa - Editora de jornalismo do programa Nós da Escola, da Multirio.Leia também
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